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Para quem está começando

Atualizado: 1 de mai. de 2020

escrito por Sannion e traduzido por Alexandra Oliveira


Então você decidiu virar reconstrucionista helênico. Parabéns! Aposto que sei o que te trouxe aqui: os deuses, e provavelmente um ou dois deles em particular. Provavelmente começou com uma simples curiosidade. Você leu sobre eles em algum lugar e teve uma espécie de “click”. Então você começou a ver coisas relacionadas a deles aparecendo com grande freqüência em lugares diferentes e ao “acaso”, e é possível que tenha vivenciado algumas coincidências estranhas, até que uma atração poderosa e indescritível tomou conta do seu espírito. Você se viu cada vez mais voltado na direção deles. Quanto mais você lia sobre o assunto, mais fascinado ficava, até que não pode mais negar que foi fisgado. Não se tratava mais de puro exercício intelectual, mas sim de um sentimento de conversão religiosa. E aí está você, provavelmente sem saber o que fazer com tudo isso. Há muita informação por aí, e ela é tão densa e contraditória e diz respeito a coisas que você não prestava atenção antes. Você só quer saber a melhor forma de cultuar os deuses, e fica se perguntando se realmente precisa aprender a calcular o calendário luni-solar ou a recitar um hino homérico no dialeto Ático antigo. E pobre de você se tentar entrar numa lista de discussão e fizer uma pergunta ali. Ao menos que você seja de aço, aposto que vai ter vontade de enfiar o rabo entre as pernas e correr para as colinas.



Então, a primeira coisa a fazer é parar de se preocupar. Eu sei que existe uma ansiedade sempre que se começa um novo caminho. É muita coisa que você ainda não sabe, e que você quer fazer direito porque é importante para você, porque você não quer cometer um grande erro, não quer ver as pessoas rindo de você como se você fosse tolo ou mesmo não quer acidentalmente irritar os deuses ao quebrar alguma etiqueta ritualística. Mas essas coisas podem te fazer ficar pensando tanto nelas que você vai acabar não fazendo nada por medo de fazer errado. E isso é muito pior do que errar. É melhor tentar e falhar do que passar a vida ao longo da estrada olhando a experiência passar, sem poder aprender com os próprios erros. E, quer saber? Nós todos já estivemos onde você está, e a maioria de nós ainda comete erros até hoje. É até bom cometer um erro por semana, para manter as coisas interessantes e nos fazer ficar humildes. Então: faça. Mesmo sabendo que você vai se atrapalhar todo, que você vai parecer meio estranho e bobo, mesmo que seja desconfortável ou que não lhe seja familiar. Dê tempo ao tempo. Você vai começar a ir pegando as coisas, se acostumando, encontrando as palavras e fazendo as ações virem naturalmente pra você, e em alguns anos você vai olhar para trás e rir do quanto você hesitava a se aproximar das coisas.     Agora, eu sei que, se você for como muitos, você pode estar querendo correr até os portões abertos, assimilar tudo de uma vez, e mergulhar a si mesmo nisso até que você esteja pensando, falando, comendo e respirando o helenismo. Se você fizer assim, em pouco tempo vai desanimar, porque o helenismo é imenso e tem coisas demais para absorver. A melhor maneira é fazer isso devagar, gradualmente, se deixando mergulhar aos poucos e ir expandindo sua consciência até que as coisas se tornem tão naturais para você que você nem mesmo tenha que pensar sobre isso: trata-se simplesmente da forma que você reage ao mundo à sua volta, às pessoas que você conhece e aos deuses que guiam tudo.     A princípio não se preocupe demais em conhecer todos os mitos e suas variantes, memorizar os hinos homéricos e órficos, conhecer os poetas líricos, entender a filosofia de Platão, queimar incensos e ofertar grãos, ter estátuas lindas e fazer libações, usar túnicas e coroas de folhas, seguir todos os festivais que existem aos deuses, ou fazer tudo de acordo com a performance esperada pelos padrões helênicos. Essas coisas são ótimas, acrescentam elementos maravilhosos ao culto, mas são apenas ferramentas.     O principal do helenismo é algo muito simples: trata-se de gratidão e de incorporar esse sentimento em atos e expressões tangíveis. É algo que pode ser feito a qualquer hora, em qualquer lugar, sozinho ou no meio das pessoas. É uma consciência de que o mundo inteiro é permeado por uma multidão de deuses e espíritos divinos, e que essas divindades são responsáveis por tudo o que vemos, sentimos e experimentamos no mundo à nossa volta, e que, de fato, sem eles não haveria vida e não haveria um mundo onde morarmos. E, por todas essas bênçãos não ditas, nós agradecemos – através sim de preces e hinos e ofertas reais, mas também pela forma que vivemos nossa vida como um testemunho da presença deles na nossa vida e no mundo. Essa gratidão é uma coisa a ser feita o tempo todo, e com a disposição mental apropriada.     É por isso que eu digo para você não se apressar. Passe um tempo cultivando esse sentimento. Tente se concentrar nas maneiras que os deuses têm usado para interceptar sua via. As coisas que eles têm feito por você e as coisas que você gostaria da ajuda deles no futuro. Tente se conscientizar da presença deles em torno de você o tempo todo. Quebre essa noção moderna de que o divino é algo remoto, infinitamente distante do mundo cotidiano onde vivemos. Tire essa idéia de que deus mora lá longe no céu. Tente ver cada nascer do sol como uma epifania de Hélio; uma árvore balançando na brisa como a presença de uma ninfa; aquela repentina inspiração que você teve para solucionar um problema como um presente de um deus. Isso nem sempre é fácil de fazer. Às vezes você pode se sentir meio bobo ao atribuir fenômenos perfeitamente naturais a uma ação divina, mas a coisa engraçada é que, quanto mais você começa a ver o mundo dessa forma, mais exemplos disso você irá encontrar. Talvez seja o caso de ver o que você quer ver nas coisas – ou talvez seja algo mais que isso. Talvez quanto mais aberto você estiver para esse tipo de encontro direto, mais desejoso os deuses estarão de se revelarem para você. Afinal, se você estivesse no lugar deles, você iria se incomodar de aparecer para alguém que está constantemente duvidando do que você diz ou mesmo do fato que você exista?     A próxima coisa a fazer é estudar. Leia tudo o que puder sobre os deuses (nos lugares certos, de preferência). Não só sobre os deuses nos quais você está mais interessado, mas também sobre aqueles que aparentemente não te fazem sentir nada. Porque, como nada no mundo, não existe um vácuo entre eles. Eles estão relacionados, seja por parentesco, amizade, romance ou o que for. Você vai ver que pode descobrir coisas sobre Dionísio ao estudar Hera, coisas que nunca entenderia se não fosse no contexto da relação que há entre essas divindades. E, quando falo para estudar os mitos, não é ler o livro e fechar depois. É se debater com o texto, tentar desvelá-lo mais profundamente, no seu sentido escondido. Entenda que há muitos níveis para um mito, e nem todos devem ser tomados literalmente. Que tipo de sentido eles têm naquele ponto? São só alegorias ou algo mais, algo que contém uma verdade superior e universal, mas que só pode ser expressa de uma maneira criativa e atemporal? Leia as diferenças entre os mitos e se pergunta que diferença é essa. O que significa ver Dionísio como filho da deusa Perséfone versus ver Dionísio como filho da princesa mortal Semele? Pergunte o que essas estórias expressam sobre a natureza dos deuses, do mundo em que vivemos, e sobre os homens que primeiro as contaram. Os mitos seriam diferentes se contados por pessoas do dia de hoje? Você vai experimentar diversas coisas ao tentar aprender mais dessa forma.     Mas os mitos são só uma das fontes de conhecimento que temos dos deuses, e nem sempre uma das mais acuradas. Por exemplo, em Homero você verá Hera como uma esposa ciumenta, mas no culto ela era muito mais poderosa, com controle sobre o céu, a agricultura e o gado. Você pode ler sobre Apolo ser o garoto dourado da arte e da música e da ordem, mas descobrir pouco sobre o seu aspecto profético escuro e seu papel na agricultura e pecuária. Para conhecer um deus, temos que entender todas as suas manifestações, e a melhor forma de fazer isso é estudando como ele se revelava aos antigos e como eles o respondiam através dos cultos. Leia sobre ritualística grega, sobre a história, a cultura, e como isso tudo se encaixava na concepção antiga dos deuses. Comece lendo Walter Burkert e Carl Kerenyi, por exemplo, mesmo que lhe pareçam densos demais a princípio. E lembre-se que todo autor tem seus fanatismos e que as coisas mudam quando novas descobertas são feitas e as velhas teorias são testadas, então isso tudo tem que ser levado em consideração ao avaliar uma fonte. Questione tudo o que lê, e verifique o que cada autor diz que contradiz o outro. Tente ler principalmente o que os próprios autores antigos escreveram. Eles viviam na época que os deuses eram sentidos como reais e a religião ainda era praticada, então todos os poetas e dramaturgos e filósofos são ótimos. Tente ler principalmente Pausânias, Plutarco, Diodoro Siculo, porque eles se preocupavam com a prática real de culto, não só com sua expressão mitológica. Não deixe passar também a maravilhosa fonte que temos na comunidade politeísta helênica, onde as pessoas estão diretamente experimentando e cultuando os deuses, e podem ter um entendimento deles melhor do que um acadêmico seco que os estuda como se eles fossem apenas umas antigas e curiosas espécies.     Agora, estudar é legal, mas nada vai substituir a experiência direta que você pode ter dos deuses. Há várias maneiras de se fazer isso.     A primeira é reservar um tempo do seu dia para ficar só você e os deuses. Não precisa fazer algo muito longo ou muito ritualizado, mas deve ser algo só para vocês. Trate como se fosse o tempo que você reserva para alguém que ama, uma hora que não é para se falar de negócios ou xingar o trânsito ou outra coisa que tire sua atenção da pessoa em questão. Pode ser em casa, em um parque, ou outro lugar que você não seja interrompido. Se você puder acender vela, incenso, colocar uma música, ajudaria muito. Você pode pensar em quem eles são, o que eles têm feito na sua vida, tentar se lembrar do que você leu sobre eles, pensar nas coisas que podem ser associadas a eles... Você pode meditar, fazer visualização, ou mesmo apenas se sentar para observar o sol se pôr ou as árvores estremecerem com a brisa e assim deixar seus pensamentos vagarem para onde quiserem. Você pode falar, uma prece formal ou espontânea – vinda da cabeça ou do coração – ou você pode ficar em silêncio o tempo todo. O que funcionar melhor para conectar você a eles.     Outra coisa que você pode fazer é realizar coisas para eles, como escrever poemas, escrever peças, desenhar, pintar, cantar, dançar, compor uma música, tocar um instrumento, atuar, esculpir, enfim, elaborar representações deles ou de coisas associadas a eles. Você pode gravar um CD com as músicas que te fazem lembrar dos deuses. Pode ser por causa da letra ou pela melodia ou pelo sentimento que a música te evoca.     Agora, pode parecer estranho falar disto depois de ter exaltado a liberdade dentro do culto aos deuses, mas existe a questão da Ética, que vem sido muito negligenciada nas discussões da nossa crença, coisa que não deveria acontecer, visto que uma está profundamente ligada à outra (afinal, ética é fazer a coisa certa pelo nosso próximo e devoção religiosa é fazer a coisa certa pelos deuses). A ética e a devoção helênica repousam sobre o mesmo princípio: “sophrosune”. Ou seja, autocontrole moderado, introspecção, conhecimento, gentileza e civilidade. Vimos isso expresso em duas famosas máximas do templo délfico a Apolo: “meden agan” (tudo em moderação) e “gnothi seauton” (conheça-te a ti mesmo). Para os gregos, poucas coisas eram intrinsecamente boas ou más. Algo que pareceria ruim poderia acontecer para evitar um mal maior, e algo que pareceria bom poderia causar grande dano. A chave é conhecer a medida das coisas, pois excessos podem ser perigosos. Para Plutarco, a devoção religiosa era o caminho do meio entre dois extremos odiosos: ateísmo de um lado e superstição do outro. Theognis dizia “o caminho do meio é o melhor” e essa é uma frase que deveria ficar estampada no seu coração e guiar suas ações. Não ser nem um capacho nem um arrogante. Não odeie o corpo e seus prazeres, mas também não permita que ele controle seus pensamentos e te leve a cometer atos abomináveis. Respeite os deuses e ouça o que eles dizem, mas não confunda cada pensamento ou capricho seu como se fosse de interferência divina. Como isso se relaciona com a religião? Bom, não pense que você pode tratar as pessoas como quiser, achando que os deuses não vão perceber. Eles atuam no mundo. Zeus preside os juramentos, Hera os relacionamentos de compromisso, Dionísio a expressão livre individual, Hermes a gentileza com estranhos e necessitados. Quando você ignora essas coisas, você os ofende. E eles não levam a “hubris” (orgulho excessivo, abuso vergonhoso dos outros) numa boa.     E, em se tratando de devoção, precisamos falar sobre os rituais. É recomendável que você lentamente introduza ações rituais na sua vida diária. Por exemplo: agradecer a Hermes se você receber um golpe de sorte (desde achar um dinheiro no chão até conseguir o emprego que você esperava); quando entrar numa floresta ou passar por um rio ou montanha ou fonte, oferecer uma prece aos espíritos que ali residem; nas refeições, agradecer pela comida e separar a primeira porção para eles e oferecê-la em sacrifício ao final; manter uma vela ou lareira acesa no centro da casa para honrar a Héstia; saudar o sol ao acordar; saudar a lua assim que a vê-la pela primeira vez no dia; fazer uma prece a Hermes ao ir para a cama; etc. Algumas pessoas mantêm um altar a “Zeus Ktesios” (Zeus Domiciliar), também conhecido como “Agathos Daimon” (Bom Espírito). Se você tiver um jardim ou quintal, pode montar belos altares aos deuses; se morar em um apartamento pequeno ou dormitório de faculdade, pode separar um lugar na estante para coisas associadas aos deuses com quem você mais mantém relações de afinidade. E, mesmo se você morar com pessoas que não compartilham a sua fé e por isso não poder erguer altares, ainda assim ofereça preces regulares a eles.     Outro costume antigo que você pode desejar incluir na sua prática é o “Noumenia”. O Noumenia era o primeiro dia do mês helênico, quando o primeiro pedaço da lua nova ficava visível. Nesse dia, a casa inteira era limpa, especialmente os altares, e colocavam-se flores e ofertas neles. É uma bela forma de começar o mês, com perfume de flores, com frutas frescas, com roupas novas, de banho tomado, com o altar purificado, e com isso se sintonizando aos ritmos sagrados do ano e da criação inteira.     Ainda falando da lua, outro costume pode ser observado: a refeição (“deipnon”) de Hécate, que cai na escuridão da lua ou ultimo dia do mês helênico. Nesse dia (os dias helênicos começam ao pôr-do-sol), se preparava uma refeição – normalmente bolos, mas você pode oferecer outra coisa – e se deixava em uma encruzilhada, principalmente se fosse o cruzamento de três estradas/caminhos. Ali se faziam preces e se deixavam ofertas aos deuses do submundo e aos espíritos dos mortos. Muitos gregos acreditavam que os mortos só existiam enquanto alguém vivo se lembrasse deles, então pense naqueles que você conheceu ou que vieram por este caminho antes de você. Esses são apenas alguns dos caminhos para você começar pelo Helenismo antes de procurar rituais mais elaborados. Na verdade, a expressão mais fundamental e consistente da nossa fé é o sacrifício, compartilhar uma porção das coisas que provêm nosso sustento essencial com aqueles que nos as deram. Não que eles precisem de comida como nós, mas eles apreciam o significado desse gesto, o qual demonstra que nós percebemos, que nos importamos, que nos realmente somos gratos e que desejamos demonstrar isso através de atos tangíveis em vez de simplesmente pensar neles. Isso faz reafirmar os laços sociais entre nós e nos dá uma chance de nos unirmos, como em uma espécie de Ação de Graças. Essas ofertas podem ser de três tipos: libações (ofertas líquidas, como vinho, leite, água, mel, óleo etc), primeiros frutos (carne, grão, fruta ou outras coisas comestíveis), e ofertas votivas (flores, estátuas, vasilhas, coisas que você pode comprar ou fazer você mesmo, e qualquer outra coisa que você queira conceder a eles). Você pode ofertar coisas em vários lugares e momentos, mas, é claro, o melhor lugar para se fazer isso é no seu altar pessoal. Não há nada como entrar no seu quarto e avistar seu altar cheio de imagens de deuses e ornado de ofertas a eles e perceber que os deuses estão presentes em todos os aspectos da sua vida, principalmente no lugar onde você mora. O altar tem uma qualidade dupla: de um lado ele pertence inteiramente aos deuses. É algo que você mantém apenas para eles. Não o deixe bagunçado ou sujo, mantenha-o afastado de estranhos, animais e crianças que podem acidentalmente causar-lhe dano. Todas as coisas do altar e o próprio espaço do altar são dos deuses. Por outro lado, eles são uma expressão muito pessoal do nosso relacionamento com nossos deuses, e cada um dos itens que colocamos ali ou usamos para cultuá-los têm um sentido profundamente pessoal. Então, nesse sentido, eles estão preenchidos da nossa personalidade e presença, da mesma forma que estão com as dos deuses. Na verdade, o altar é um lugar onde os reinos mortais e imortais se fundem e se unem, como uma interseção entre os mundos. Por isso, nenhum altar é igual ao outro, já que cada um de nós tem suas próprias experiências pessoais com os deuses. E também é por isso que não posso ficar lhe dizendo como montar um altar. Você vai perceber isso gradualmente. Claro, ele provavelmente terá imagens dos deuses, bacias ou pratos para ofertas, uma taça para libações, um queimador de incensos, velas da cor apropriada e coisas assim. Ele pode ser bem simples e limpo ou pode ter várias coisas mantidas juntas como se fosse um memorial do seu relacionamento com o deus, e por isso que a maioria dos altares da antiguidade era no jardim ou quintal ou pátio, mas isso é você quem vai definir. Minha única sugestão é não deixar cinzas, sujeira e outras coisas acumularem, e retirar as ofertas comestíveis antes de elas começarem a estragar. Um outro conselho seria montar um altar a um só deus ou a deuses que têm uma longa e boa relação um com o outro. Evite manter muito próximos os altares a deuses que têm uma relação ambivalente entre si. A exceção é o caso de você montar um altar a todos os deuses coletivamente, que é algo com precedentes na antiguidade, onde existiam altares aos Doze Deuses na Ática e em Olímpia e estruturas semelhantes como o Pantheon (“todos os deuses”) em Roma. Se você está fazendo tudo o que falei até aqui, ótimo! Mas, você deve estar se perguntando, “e a história do calendário e dos festivais, das palavras certas para recitar preces ou o que dizer quando eu fizer sacrifícios?” e outras coisas que a gente sempre vê serem perguntadas nas listas de discussão. Certo, essas coisas são importantes sim, mas acontece que… os festivais são ocasiões muito especiais que não acontecem sempre. E, se você se limitar a eles para dirigir seu pensamento aos deuses, algo está errado. Você não faz coisas legais para seu cônjuge apenas no dia dos namorados e no aniversário de casamento de vocês (e, se faz, saiba que está correndo o risco de ele/a se separar de você). O ritual formal é legal, mas nunca substituirá uma prece ou um sacrifício que é feito de todo o coração. Além disso, na Grécia Antiga, os festivais eram diferentemente celebrados de acordo com a polis. Cada uma tinha seus costumes, leis, sistemas políticos, dialetos regionais e até tradições religiosas. Alguns festivais eram realizados por todas elas, como os pan-helênicos, com muitas coisas em comum, mas tanto existiam pessoas que viviam muito enfiadas nas tradições da área onde moravam quanto existiam pessoas que não se incomodavam com as contradições e variações dos outros, até pelo fato de estas serem bastante numerosas de um lugar para outro. E isso ainda se repete hoje entre os reconstrucionistas, havendo também pessoas que vivem entre esses dois pólos. Temos pessoas que buscam seguir piamente os costumes antigos, temos pessoas que incluem as modificações feitas durante a Renascença, temos pessoas que misturam tradições de outras culturas junto com a dos olimpianos, tempos órficos, tempos pitagóricos, temos neoplatonistas, temos animistas e panteístas e várias outras vertentes de politeísmo, e até pessoas que se dizem agnósticas mas que ainda assim encontram beleza nos mitos e rituais da Grécia antiga. Nada que eu dissesse seria igualmente aceito por todos esses grupos e indivíduos, e espero que você tenha percebido que não existe uma Verdade Universal e um Caminho Único dentro da nossa religião. Não siga piamente o que alguém lhe diz, encontre a sua verdade, afinal, estamos falando da sua “re-ligião”, da sua maneira de se re-ligar aos deuses. Após essa pequena advertência, vamos voltar ao que falávamos. Uma das primeiras coisas que você precisa fazer é definir quais os deuses você quer cultuar. É impraticável cultuar a todos os deuses do panteão. Não só é impossível devido ao tempo – já que provavelmente temos cerca de 30 mil deidades – mas porque não é necessariamente desejável fazer isso. Certamente devemos respeitar todos os deuses, porque são deuses, e mesmo o menor deles é superior ao maior dos mortais, e porque sabemos o que acontece àqueles que os desrespeitam (vide Hipólito, Penteu e Niobe, por exemplo), mas não se espera que tenhamos o mesmo tipo de sentimento com relação a todos, assim como não temos o mesmo tipo de relacionamento com todas as pessoas que conhecemos. Seria diminuir o sentimento que tenho por alguém que amo se eu dissesse que não há diferença entre essa pessoa e outra que passa por mim na rua. Da mesma forma, há deuses com os quais temos um relacionamento muito intenso e duradouro. Alguns outros deuses aparecem na nossa vida por um tempo e às vezes voltam, enquanto outros não desenvolvem relacionamento conosco. Alguns podem até ser hostis com a gente. Esteja aberto a eles e responda quando eles se manifestam para você – é muito ruim ignorar o chamado de um deus, acredite – e esteja disposto a mudar sua prática de acordo com as mudanças no seu relacionamento com eles, mas no começo é melhor apostar em começar com os deuses aos quais você se sente mais próximo e então trabalhar seu caminho a partir daí. Se você não se sentir próximo de nenhum, então tente usar algum método de adivinhação ou estudar um deus a cada mês para aprender sobre ele e experimentar uns rituais a ele. Isso pode te ajudar a sentir algo e a eliminar preconceitos que você possa ter com alguma deidade em particular. Certamente a sua percepção inicial com relação a alguns deles irá mudar. Hera, por exemplo, não é só uma matrona ciumenta como muitos podem pensar. Assim que você tiver os seus deuses, estabeleça uma rotina regular de culto. Não importa qual, desde que você se fixe nela e não perca seu momento de devoção. Você pode, por exemplo, escolher um dia que é associado a um deus. Em outros idiomas, os dias da semana têm os nomes deles. Lunes/lunedí/monday (segunda-feira) é o dia da lua – Selene, terça-feira de Ares, quarta de Hermes, quinta de Zeus, sexta de Afrodite, sábado de Cronos e domingo de Apolo. Ou use os dias helênicos (veja o calendário) a cada um, normalmente no começo do mês. Hesíodo, em “O Trabalho e os Dias” lista um número de dias que eram consagrados aos deuses na Beócia. O que você vai fazer nesse dia cabe a você. Você pode fazer um ritual completo de sacrifício, pode apenas oferecer incensos e libações ou pode fazer atividades associadas ao deus (como artes marciais para Ares, atividades ecológicas para Ártemis, teatro para Dionísio, música para Apolo etc). A próxima coisa, depois de conhecer os rituais oficiais, seria criar os seus próprios, e segui-los. Pense na sua vida. Quando foi que você sentiu o chamado de um deus? Foi em alguma data em especial? Há algum aspecto deles que você quer honrar ou um mito que você quer comemorar? Qual é o ciclo agrário da região onde você vive? (Afinal, para que celebrar a colheita da uva se na sua terra a vinha ainda nem amadureceu, ou celebrar a festa das flores quando seu jardim está encoberto pela neve?) O que os festivais antigos representavam? Como você obter o mesmo efeito sem ter centenas de pessoas para entrar numa procissão ou uma hecatombe de bois para oferecer a Zeus ou uma estátua enorme de Atena para costurar um “peplos” ou um porto de onde seguir em um cortejo náutico? Há várias coisas que se pode fazer com os recursos limitados. E lembre-se que esses não são rituais de vinte minutos e depois seguir com o seu dia, esquecendo da data; eles são algo grande, com sacrifícios, danças, jogos, cantos, banquetes e outras atividades durante o dia inteiro. Desde que você acordar até ir dormir, ofereça o dia aos deuses. Faça coisas para eles – artes, refeições, ofertas, jogos, corridas, preces, ouvir boa música, assistir um filme relevante para o tema do festival etc. Coletivamente, tudo contribuirá para o espírito festivo do dia. E então, para coroar isso tudo, você pode então fazer o tal ritual formal de vinte minutos que tantos consideram como “observar o festival”. Comece pequeno e depois construa em cima dos festivais, a cada ano, até perceber que tem algo já bem estabelecido dentro da tradição. A partir daí, expanda sua prática incluindo os festivais antigos também, aqueles que falarem mais alto a você, aqueles que expressarem mais a natureza do seu deus, e celebre ele ou ela. Leia tudo o que puder deles, tente entender o que era feito e por que era feito – a linguagem simbólica por trás dos atos. Você pode adaptar algumas coisas, mas cuidado para não adaptar demais a ponto de ele parar de lembrar o original num sentido que despersonalize você chamá-lo do mesmo nome, ou admita que você inventou uma outra coisa nova. É terrível gente que faz algo totalmente ‘nada-a-ver’ e diz que está praticando tal festival só para ter o prestígio de dizer que segue o que se fazia antigamente. O espírito é totalmente diferente, o sentido e, às vezes, até as ações são mudadas, nada que faça lembrar o original, então ele não pode ser chamado pelo mesmo nome! Seria como afirmar que você celebra o Natal escondendo ovos, comendo coelhos de chocolate, vestindo cores pastéis e anunciando que um vampiro judeu de dois mil anos acordou. Mas, se você fizer mudanças consistentes, ótimo! Por exemplo, há um ritual em que antigamente se sacrificava um porco para Deméter e jogava o sangue sobre as ofertas, e hoje em dia se cozinha o milho (que também se associa a ela) e se asperge a água do cozimento. Mas sabe de uma coisa? A fórmula helênica é até bem simples de se lembrar: purifique tudo com a água lustral (“khernips”), caminhe em torno do aposento, espalhe cevada no altar e no fogo, diga algumas preces, faça algumas ofertas etc. Não precisa elaborar roteiros ou pronunciar palavras mágicas com o sotaque perfeito para dividir seu corpo, nem tocar sinos na hora certa ou usar pinhas para liberar poder. E, honestamente, ler um roteiro tira um pouco do espírito da celebração. Suas preces deveriam vir do coração. E se você repetir frases e tropeças nas palavras, qual a graça? Você acha que os deuses preferem ouvir alguma poesia em tom monótono com você concentrado no próximo passo e acabando perdendo tudo o que está acontecendo à sua volta? Cultos são experiências que devem envolver todos os seus sentidos. Por isso que acendemos fogos, queimamos incensos, bebemos vinho, fazemos procissões, dançamos, usamos imagens bonitas, tocamos música. Não desperdice seu tempo ou o deles com celebrações onde você só se doa pela metade. Então, resumindo, a única coisa que você realmente precisa saber para começar pode ser expressa em três simples palavras: viva sua crença. Nossos deuses são reais e eles não exigem de nós nada menos do que isso.


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