(texto de 17/04/2017, por Alexandra)
Um ponto que volta e meia andamos lendo nas redes sociais é a questão do "livro sagrado". Não, o helenismo não tem um livro sagrado como a bíblia cristã ou os vedas hindus ou o alcorão islâmico ou o torá judaico. A literatura de Homero e Hesíodo, a história de Heródoto e Tucídides, a filosofia de Sócrates e Platão, o teatro de Eurípides e Sófocles etc, tudo isso é literatura, história, filosofia e teatro, não é doutrina religiosa. Nem mesmo os mitos são essencialmente literais. Esses livros dos gregos apenas dão uma ideia de como os antigos envolviam os deuses em suas vidas, e não era uma coisa tal como uma religião separada. Como dizia Tales de Mileto, "o mundo está cheio de deuses", não fazia sentido limitá-los a uma espécie de manual. Eles faziam parte de todas as parcelas e momentos da vida.
Um texto com um código moral seria como uma "razão correta" (ortodoxia) a se seguir, e os helenos estão mais interessados na "prática correta" (ortopraxia). Não adianta conhecer um reto pensar sem um reto agir, ou - como diriam os cristãos - uma "fé sem obras". Quando Aristóteles orienta sobre a virtude ser um meio termo entre dois vícios, nós sabemos ilustrar o que ele está falando, nós conseguimos pensar em exemplos, é algo bem prático. A virtude da coragem está entre o vício do medo e o vício da temeridade/inconsequência. Não se pode nem se paralisar e nem se jogar sem pensar nas coisas. Ele também salienta que a busca pela "excelência na virtude" (areté) é adquirida com a prática. E esse seria o nosso objetivo, sermos o mais virtuosos possíveis.
Então, quando alguém comenta que não tem feito festivais, rituais, libações etc, como se não estivesse estabelecendo contato com o sagrado, essa pessoa precisa pensar que o mais importante são as ofertas atitudinais. Preservar a natureza em honra a Ártemis, fazer um curso em honra a Atena, praticar música dedicando-a a Apolo, chamar por Hermes no trânsito ou por Asclépio na doença, entre outras coisas, também são forma de exercer sua conexão.
Aprendemos com Salústio que os deuses não precisam de nada, que "O divino em si mesmo não possui necessidades e a adoração é feita para o nosso próprio benefício. A providência dos deuses chega a todo lugar e precisa apenas de alguma congruência para a sua recepção. Toda a congruência é alcançada através de representação e similitude [...]. De todas essas coisas os deuses não ganham nada; o que um deus poderia ganhar? É nós que ganhamos alguma comunhão com eles. Acerca de sacrifícios e outras adorações, porque beneficiamos o homem com elas, e não os deuses." ('Sobre os deuses e o cosmo', trechos 27 e 28) Ou seja, as ofertas comuns e as ofertas votivas - como as estátuas - são para nos lembrar e nos fazer sentir conectados com o sagrado, não são uma necessidade de conquistar um divino que se afete com coisas humanas.
Assim, quando alguém igualmente diz que precisa estar na natureza para se sentir conectado às deidades, que não acredita em um politeísmo urbano, essa é uma questão bem mais pessoal de 'o que é que te ressoa mais ao coração' do que uma questão doutrinária do helenismo como religião da pólis que se "oponha" ao paganismo do pagus. E, como vimos no início, doutrinas e ideologias não cabem muito no nosso caso em que não somos orientados por textos sagrados.
Ótimo se você encontrou na natureza uma forma de se sentir mais elevado espiritualmente, mas nada é regra. Há muita idiossincrasia numa prática, o que nos unifica é mais o objetivo, a busca da excelência e de sermos pessoas melhores. E o caminho para isso é parte pelo autoconhecimento ("conhece-te a ti mesmo e conhecerás o universo e os deuses") e parte pelo equilíbrio da justa medida, o métron (do "nada em excesso"). Nada impede de você se sentir neopagão ou 'neopolita' (termo meu), o que vale é chegarmos ao mesmo lugar através daquilo que nos faz sentir melhor, do que nos deixa bem e com a sensação de dever cumprido.
Há espaço para tudo e a natureza também não está aquém da intervenção humana. A cidade também a inclui e está inclusa nela. Vamos tentar apenas ser melhores humanos onde quer que nos inserimos.
Adorei, muito bem explicativo!