Miasma e Catarse
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  • Foto do escritorAlexandra Oliveira

Miasma e Catarse

(Texto originalmente publicado a 09/05/2010.)


Sugeriram-me falar sobre o Miasma, já que muitos ainda confundem tanto ele quanto a Hybris com uma noção de "pecado" que não cabe nesses conceitos, visto que o miasma é um termo sem peso moral, algo bem mais metafisicamente complexo do que uma transgressão que gera "culpa" - como entendemos o pecado. Miasma é uma poluição, contaminação, mas essa "poluição" a que o miasma se refere não necessariamente tem a ver com "sujeira", assim como "purificar-se" não é exatamente "se limpar". Portanto, reunindo leituras que fiz de postagens da Eleuthera (2), do Ruadhan e outras fontes (livros e companhia), fiz um apanhado breve e geral aqui para vocês.


Antes de tudo, convém lembrarmos que há vários tipos de miasma: o do corpo (como doenças e morte), o da alma (como impiedade, vícios, crimes e a hybris), o da casa (como misérias, desgraças, calamidades), o da cidade (como pragas, injustiça, desastres naturais), o do planeta (como febres, epidemias). Há também diversas causas do miasma, todas referentes à perturbação da lei natural e a mudanças da ordem da vida na Terra: contato com agentes estranhos (espíritos de gente assassinada, espíritos de pessoas que morreram com miasma, almas que não receberam os ritos fúnebres); contato com o nascimento ou com a morte natural; contato com certas ações criminosas ou injustas; contato com lugares que passaram por eventos trágicos ou violentos ou sacrílegos; ou resultado de ações que desagradaram aos deuses.

A lei natural é representada por Themis. Sempre que ela é transgredida, aparece Nemesis, sua antítese. As filhas de Nemesis - Erínias - são as agentes do miasma, trazendo consigo a ira. Isso acontece porque é preciso haver justiça, ou seja, se existem ações criminosas, elas devem gerar reações recíprocas para o equilíbrio e a equidade. Então, realizamos a Catarse (purificação) para nos reconciliar com os agentes sobrenaturais que poderiam nos punir, assim como para nos purificar dos efeitos físicos que o miasma provoca. A Catarse [Katharsis] pode acontecer através de: purificações menores e anteriores às preces/ritos (como lavar as mãos e rosto, tornar a água lustral etc); purificações após o contato com o parto ou a morte de alguém; purificação da atmosfera de algum lugar; expulsão de agentes de miasma; purificação através de curas e remédios; purificação da alma em forma de música e dança; purificação de uma casa e seus membros; purificação de uma vítima de crime violento; purificação de alguém que matou sem intenção; purificação da alma para fins de culto; rituais específicos de purificação (Diasia, Thargelia etc). Vamos ver então miasmas e catarses específicos de cada caso: 1) Morte natural - os olhos e boca do cadáver ficam fechados e o corpo dele é lavado com água do mar ou salgada (se houver feridas de morte violenta, elas devem ser limpas e cobertas); os parentes do morto devem ser purificados antes dos ritos fúnebres e depois que o período de luto passar (mulheres grávidas não podem ter contato com o corpo do morto); visitantes devem se purificar após sair do velório (lavando suas mãos em água salubre ou lustral que esteja do lado de fora da porta da casa); a casa deve ser purificada com água do mar três dias depois da morte; o suprimento de água da casa deve ser trocado e o fogo do altar deve ficar apagado e só será aceso novamente no terceiro dia de catarse; o morto pode receber ovos e comidas no túmulo (ovos têm enxofre, que é bom para expulsar miasma). 2) Parto - nem a mãe nem o bebê são fontes de miasma, e sim o ato de nascer é que tem tais propriedades, então o lugar onde ele ocorre é tratado da mesma forma como o do caso acima, com algumas diferenças: a casa é purificada no quinto, no décimo e no quadragésimo dia após o nascimento; as pessoas que tiverem contato com a mãe nos cinco primeiros dias também precisarão se purificar. 3) Intercurso Sexual - esse é um miasma de natureza menor e costumava se relacionar mais aos fluidos masculinos do que aos femininos. Deve-se tomar banho antes de se apresentar diante dos deuses para preces/ofertas/ritos. No caso de crimes sexuais, cujo miasma era maior, o ritual era outro, com detalhes ainda desconhecidos, mas acredita-se que consistia de sacrifícios no templo de Apolo. 4) Assassinato - o pior dos miasmas, que não vinha apenas como punição ao assassino, mas também à sua família, descendentes e até à cidade de residência dele. É por isso que assassinos eram exilados, pois o contato com ele poderia levar à infertilidade das pessoas, animais e plantações. Com relação ao local do crime, temos o exemplo de quando Odisseu limpa sua casa (com enxofre e fogo) do miasma de ter matado os pretendentes de Penélope. Outra forma de purificação é pelo sacrifício ritual de um Pharmakos (bode-expiatório). Neste caso, a catarse tinha dois momentos: primeiro o assassino teria que ser liberto dos desejos de vingança da alma do assassinato, depois teria que ser purificado do miasma do próprio crime. 5) Lar - como o miasma afetava famílias e gerações e atraía coisas ruins para o lar, e como às vezes o parto e a morte aconteciam na casa, esta precisava ser purificada. 6) Terra/Água/Atmosfera - os helenos se preocupavam com a harmonia entre alma, corpo e meio-ambiente, então as condições sanitárias da cidade e do planeta também nos importam. Acreditava-se que certos lamaçais, brejos e pântanos continham propriedades de miasma e causavam febre nas pessoas dali, assim como se acreditava que usar a mesma água usada por alguém com miasma poluiria a outra pessoa também. Pragas e epidemias eram resultado de miasma na atmosfera, então se deveria acender fogueiras com unguentos de cheiro doce e coroas de flores para purificar o ar. [ Abrindo um parênteses aqui, é bom ressaltar que menstruação NÃO é miasma, a quantidade de sangue presente num fluxo (que combina mais pedaços de tecido e mucos do que sangue) às vezes é maior que o sangue que sai de um corte acidental no dedo. Essa ideia de impureza relacionada a coisas femininas veio de séculos de influência judaico-cristã, que não estavam presentes no helenismo. O que recomenda-se é: no caso de cortar o dedo, lave a ferida, faça preces a Asclépio, bote um curativo e esqueça; no caso de menstruação, tome um banho relaxante, troque seu absorvente/tampão/toalhinha, faça preces a Higéia e Réia e esqueça. Siga então para o seu ritual tranquila. ] É verdade que os partos no mundo antigo não eram tão esterilizados como hoje, assim como os ritos fúnebres não deveriam ser muito higiênicos e que, em compensação, hoje a gente provavelmente polui muito mais o meio-ambiente. No entanto, miasma não significa falta de higiene e catarse não significa limpeza do corpo. Ainda assim, não há razão para se apavorar com a questão do miasma a ponto de achar que não pode fazer nada e tem que parar com todos seus rituais por medo de estar impuro. Tente olhar pelo lado da saúde, do equilíbrio e da justiça, de uma forma bem prática. Para cada tipo de miasma há uma maneira de se realizar catarse, e não existe nenhuma pessoa ou crime que não possa ser purificado.


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