(18 de outubro de 2010 - A organização grega THYRSOS lançou a segunda edição de sua revista IDEON ANTRON, com 60 páginas, e nela vocês encontram este artigo de 3 páginas escrito pela Alexandra.) Estamos acostumados a aplicar a palavra “sacrifício” a algo que não queremos fazer porque é difícil ou doloroso ou chato - mas que fazemos pelo bem de alguém ou algo. Então a maioria de nós leva essa mesma visão de um sacrifício quando ele tem a ver com religião, mas, bem, não deveríamos. Sacrifício pode ser uma coisa muito prazerosa. E é a base de qualquer crença. Vários estudiosos acadêmicos concordam que não existe religião sem sacrifício, que ele é uma das ações principais da fé, a expressão mais perfeita da comunicação entre deuses e homens, entre o mundo espiritual e material. E por que isso? Antes de tudo, vamos ver de onde a palavra vem. É diferente em línguas de base grega e latina. Para nós no Brasil, sacrifício vem do latim “sacer-facere”, “tornar sacro”, um processo pelo qual algo profane se torna sagrado quando ele é dado a uma deidade. (Curiosamente, alguns escritores acham que o sacrifício faz o oposto, transformaria a criação sagrada em uma comida profana para que ela possa ser consumida sem ofender as deidades.) Já o verbo grego para realizar sacrifício é “thyein”, “fazer fumaça”, a fumaça a qual se ergue das ofertas em chamas e vai até os deuses através do ar. Essa oferta normalmente é uma coisa valiosa, e é por isso que tínhamos animais sendo ofertados, uma vez que eles não eram lá muito baratos nos tempos antigos. Seguindo o princípio de “kharis” e a ideia contratual de “eu te dou para que você possa me dar”, o sacrifício é comumente definido como algo que te faz ter o favor de uma deidade. Mesmo quando sacrificamos a nossos ancestrais ou “daimons”, isso também é uma forma de diálogo, permitindo que seus espíritos se comuniquem com os humanos vivos. E, uma vez que estamos falando de vida e morte, é interessante notar que o sacrifício tem algo a ver com alguma coisa morrendo. Algumas culturas acreditavam que precisávamos equilibrar o mundo ao promover a morte para obter a vida, matando coisas para conseguir colheitas férteis e coisas assim, além de os guerreiros verem a morte como um rito de passagem. Mas isso vai além de um equilíbrio natural. Quando estudamos várias tribos espalhadas pelo mundo e algumas tradições com culto de mistério, vemos o sacrifício como uma forma de simbolicamente imolar a deidade para lembrar do seu mito de retalhamento (como Dionísio, Osíris etc) e para assimilar o divino ao comermos de seu corpo e sangue representados pela comida e a bebida. A deidade se transforma em vários pequenos pedaços e se torna acessível para todos que se unem ao rito sacrificial. Esses pedaços não são apenas partes dos deuses em nós, mas a deidade inteira, uma vez que cada parte possui o mesmo substrato do/a deus/deusa inteiro/a. Também podemos ver que essa comida pode ser uma planta crescida do corpo enterrado do deus, não apenas um animal ou humano. Por exemplo, as ofertas dos primeiros-frutos poderiam significar que a energia na colheita é a juventude da deidade, em todo o seu esplendor, algo verdadeiramente muito sagrado. Embora as pessoas achem que apenas a morte e a destruição possam ser chamadas de sacrificial – enquanto frutos e flores seriam conhecidos como ofertas, os frutos e flores também estão perdendo suas vidas presos à árvore ou ao solo, os grãos também estão morrendo para dar lugar ao vegetal que se tornarão, então é genuinamente um sacrifício, e não apenas por essa razão. Tenha em mente que o sacrifício em grego é a fumaça, e que os deuses não precisam comer para viver, então qualquer coisa valiosa poderia ser queimada no fogo para produzir tal fumaça. Há uma declaração de um pigmeu do centro-leste da África a um antropólogo que me lembrou muito a nossa forma de cultuar Héstia quando o li. Ele diz que, quando ele mata um búfalo, ele pega a melhor parte e a coloca no fogo, queimando uma parte e comendo o restante com sua família. Ele também diz que, quando ele encontra mel, ele joga um pouco na floresta e no céu antes de se servir dele. E, se ele tem vinho, ele verte um pouco do vinho na terra. Quando ele faz tais coisas, pronuncia a seguinte prece: “Waka, você me deu este búfalo, este mel, este vinho; eis a sua parte disso. Dê-me força e vida, e não permita que nada de mau aconteça a meus filhos”. Ele disse ao pesquisador que Waka é o dono de tudo, da terra, das florestas, dos rios. O que eu quis mostrar ao citar este nativo é que há uma espécie de preparação de tudo que vamos usar que tenha vindo das deidades, senão todo rito seria um sacrilégio/profanação, uma vez que estamos transpondo os limites que nos separam dos deuses. O sacrifício prepara essa transição, lentamente e gradualmente introduzindo a pessoa dentro do espaço de coisas sagradas. É como cozinhar para ter uma refeição melhor, mais saudável e mais gostosa. Agora estamos finalmente chegando onde eu queria ir com vocês: o sacrifício como um banquete. E um banquete onde não importa se você serve carne ou vegetais ou grãos, o mais importante é estar com os deuses. O coração do sacrifício é o elemento spiritual, e não as direções materiais certinhas e externas que muitas pessoas acham, não o trabalho duro e chato e doloroso para ter realizar alguma coisa. Não é só dar algo como um tribute para honrar uma deidade superior como várias religiões fazem de uma forma servil. Vocês já notaram como o sacrifício envolve comida e bebidas? O que fazemos na nossa sociedade moderna com eles? O que significa sentar à mesa com o seu pessoal? Normalmente não quer dizer que você está recebendo essas pessoas como parte da sua família ou clã? Se você estudar mais a fundo esse tema, verá que compartilhar uma refeição tem a ver com compartilhar a mesma carne e sangue. Então, banquetear-se com os deuses declara nossa conexão, nossa relação de parentesco com eles. Nesta forma de ver, o sacrifício não seria um ato de resignação, mas um ato de comunhão. E não é apenas sentar-se à mesa com as deidades, mas compartilhar uma refeição sagrada com elas. É prazeroso. É válido para qualquer refeição que partilhamos, não apenas aquela a qual matamos ou cozinhamos nós mesmos. Para honrar a tradição, terminarei este artigo com uma libação. Lembre-se que as libações introduzem e concluem qualquer ato sacrificial e ritual. Até os deuses eram representados em cerâmicas vertendo libações. É uma espécie de polaridade que equilibra o sacrifício de sangue. Os membros de antigas pólis costumavam fazer libações para estabelecer/definir que eles tinham resolvido algo e se comprometido. As libações proclamavam uma trégua, uma vez que elas são “sem sangue, suaves, irrevogáveis e finais” (“bloodless, gentle, irrevocable and final” - Burkert). Então, poderíamos terminar este texto nos comprometendo com os deuses de que iremos ter mais oportunidades para partilharmos um banquete com eles e fazer-lhes sacrifícios pelo bem da religião que temos em comum. Espero que isso ajude a manter nossas crenças vivas. Referências: -> Emilio Durkheim – Las Formas Elementares de la Vida Religiosa (1968) -> Jon D. Mikalson – Ancient Greek Religion (2005) -> Sarah Kate Istra Winter – Kharis: Hellenic Polytheism Explored (2004) -> Waldomiro O. Piazza – Introdução à Fenomenologia Religiosa (1976) -> Walter Burkert – Greek Religion (1985)
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