"Há várias razões para o cristianismo
ter conquistado uma ascendência. Uma delas é que os séculos II a IV
desta era foram uma época de transição radical, quando todas as
instituições políticas, sociais, econômicas e espirituais do império
foram desafiadas e vistas como insuficientes. O cristianismo provinha
uma alternativa a isso, e oferecia às pessoas algo parecido com
autoridade e estabilidade em épocas profundamente incertas. (Épocas as
quais se parecem com a que nos encontramos hoje.)
Mas a Grécia e
Roma tinham passado por revoltas radicais antes disso - em alguns casos
promovendo transformações ainda maiores - então qual foi a diferença
desta vez?
Honestamente, acho que Tertuliano estava certo quando
afirmou que era o sangue dos mártires que fez a Igreja prosperar. Mas
acho que ele errou foi no porquê disso.
A religião sempre teve
um forte componente social atrelado a ela. É algo que une a comunidade
através de experiências e crenças compartilhadas. É também, de alguma
forma, um contrato social, onde a comunidade entra em uma barganha com
os deuses. No final concordamos em ser fiéis a certas leis, para honrar
os ancestrais e suas tradições, e para desempenhar as cerimônias
religiosas apropriadas. Em troca, os deuses concederão proteção para a
comunidade, sucesso, e abundância de terras, rebanhos e filhos. Isso é
verdadeiro na religião grega, romana e egípcia - mas também o era no
antigo judaísmo.
Agora, quando o cristianismo entrou em cena,
ele foi percebido como uma contra-cultura. Os cristãos não desejavam
reconhecer os deuses ancestrais e viraram as costas para as tradições
da antiguidade que mantiveram o estado seguro por incontáveis milênios.
Desnecessário dizer, isso provocou uma grande preocupação entre os
romanos, que procuraram erradicar a "superstição perigosa e
perniciosa". Enquanto isso pode ter parecido uma coisa sensível na
época, percepções posteriores mostram que foi a abordagem errada. Por
quê? Porque a aderência religiosa não é algo que possa ser forçado
(obrigado, compelido). O amor aos deuses deve brotar no seio de sua
própria concordância, livremente concedido. Os deuses nunca exigiram
tais honras compulsórias. Na verdade, quando se olha para trás, nos
mitos, toda hora que alguém é morto por instituir o culto de novos
deuses, os deuses punem a comunidade até que emendas sejam feitas e o
culto a aquele deus seja admitido/incorporado. (Veja os relatos da
recepção de Dionísio, Magna Mater ou Serapis, se tiver dúvidas.) Platão
disse que o ciúme/inveja fica de fora do coro divino - e acredito que
esse seja um princípio fundamental da nossa fé. Nossos deuses não são
ciumentos. E acho que se ofendiam grandemente em ver pessoas torturadas
e mortas no nome deles. Eis o porquê de o tumulto que sobreveio ao
império romano não ter se dispersado com o derramamento de sangue
cristão. As pragas, as penúrias, a derrota militar e o caos social que
esses massacres organizados procuravam terminar, apenas se
intensificavam à medida que as perseguições aumentavam. Era como se
cada gota do sangue do mártir deixassem os deuses mais zangados e os
afastasse mais e mais. Eles sentiam que seus templos tinham sido
poluídos, e então eles os deixaram ser destruídos. Os sacerdotes
renunciaram às suas obrigações solenes para manter a paz dos deuses,
para promover harmonia e felicidade, em vez de participar dessa
carnificina, crueldade e ódio - e, conseqüentemente, os deuses virassem
suas costas a eles.
O poeta Hesíodo teve uma profecia de uma
época de calamidade para a raça humana, quando suas ações iníquas
fariam os deuses partirem da terra para o Olimpo:
"E então Aidos
e Nêmesis, com suas doces formas enroladas em mantos brancos, partirão
da terra de largos caminhos e abandonarão a humanidade para se juntar à
companhia dos deuses imortais: e tristezas amargas serão deixadas para
os homens mortais, e não haverá ajuda contra o mal." ('Os Trabalhos e
os Dias')
Mas não foi só Aidos e Nêmesis que partiram - e sim
todos os deuses. Embora, claro, eles não tenham partido todos de uma
vez. Alguns se deteram por aqui, ajudando a humanidade, se esforçando
para fazê-la ver através da sua cegueira e crueldade. Alguns foram
tocados pelo exemplo da verdadeira sabedoria e virtude entre os homens,
e continuaram a proteger a Grécia, o Egito, Roma etc, por conta
própria, protelando o crepúsculo o quanto podiam. Alguns - Dionísio,
Hermes, Pã, Afrodite, entre outros, que nos surgiam repetidamente em
escritores mais tardios - permaneceram até depois disso, seu amor pela
humanidade era tão grande que eles não poderiam abandoná-la ao sombrio
destino que ela amplamente merecia. Portanto, através das eras, a
presença deles foi continualmente sentida por certas almas sensíveis e
poéticas, que se apegavam aos velhos tempos e honravam os deuses, mesmo
que assim arriscassem suas próprias vidas. Eles os cultuavam em
segredo, eles escreviam lindos versos cheios de anseios e celebrações
pelos deuses e, acima de tudo, eles mantiveram nossa memória viva.
Através dos tempos, os deuses observaram e nutriram essas almas sábias
e eles falaram delas aos outros deuses que tinham virado seu rosto do
mundo, dizendo "Nem tudo está perdido!"
A princípio, os deuses
tinham dado a terra aos cristãos, para reprimir os pagãos e fazer
emendas pelas vidas perdidas em seu nome. Mas, com o tempo, os cristão
se provaram simplesmente tão indignos do mundo quanto os pagãos tinham
sido, ou até mais. Pois eles procuraram a completa eliminação dos
deuses, a destruição dos lugares lindos de culto, e eles trataram seus
companheiros com muito mais crueldade ainda e com maior sede de sangue
do que os romanos tinham feito quando estavam no poder.
E,
então, os deuses começaram a voltar, e o foco do poder mudou. Só que
nesta época seria diferente: nenhum grupo seria assassinado
inteiramente. Todos deveriam aprender a viver juntos e compartilhar o
poder. O homem deve ser ensinado a ser fiel às virtudes do amor, da
comunidade, da justiça, dap iedade, da filantropia etc, e nunca matar
ou obrigar seus companheiros a cultuar de uma maneira que não esteja de
acordo com seu próprio coração. Quando agimos dessa forma, atraímos os
deuses para mais perto do mundo - mas, quando agimos injustamente ou
impiamente, nos fechamos à presença deles.
Se eu acredito que essa seja a explicação e causa reais? Não tenho certeza - mas acho que funciona a nível de 'mythos'."
(Sannion - http://sannion.livejournal.com/698421.html - tradução de Alexandra Nikaios.)